segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Mulheres enfrentam carroceiros e livram cavalos de chicotadas

Na Bahia e em Porto alegre, brasileiras lutam para defender animais de maus-tratos e os protegem do excesso de carga e do sofrimento.


A advogada baiana Ana Rita Tavares começou a defender animais há cerca de oito anos. Ela tem 17 cães perto dela e mais 250 em um abrigo. Todos têm histórias que começaram muito tristes, mas que ela proporcionou um final feliz.

Ana conta o que sente quando recolhe animais nas ruas: “Isso é uma coisa fantástica, porque você vê o animal que estava completamente desassistido, humilhado. Esses animais são muito maltratados, em todos os sentidos. Eles são humilhados. Ele quer o carinho, ele quer um cantinho, ele quer ser alimentado, ele quer ter direito ao sossego”.

Na mesa de trabalho, Ana Rita acumula, além dos históricos de cada um dos cães, cópias de processos contra maus-tratos. São mais de 100. Em um deles, ela conseguiu convencer um juiz e um padre a mudarem de opinião.

Um verdadeiro milagre aconteceu na Bahia. Depois de quase 230 anos de tradição, cavalos e jegues não foram usados no cortejo de lavagem das escadarias do Bonfim. É uma das festas mais populares de Salvador, que reúnem católicos e seguidores do candomblé.

Um dia, Ana Rita olhou para essa celebração com outros olhos e viu sofrimento. Ela registrou tudo no documentário “Os animais na terra da felicidade”. “São cavalos, éguas que carregam carroças cheias de gente. Na euforia própria da festa, essas pessoas pulam muito. Então, aquele peso maltrata muito o animal”, comenta a advogada. "Nós registramos esses ferimentos, inclusive a cela em cima do ferimento do animal. Aquilo maltrata demais. Têm outros ferimentos nas patas e nas pernas do animal”.

O documentário foi fundamental para convencer a Justiça. Desde janeiro, está proibido o uso de animais na festa.

O juiz Rui Eduardo Brito conta que se assustou quando viu as imagens do documentário: “Os animais estavam feridos, de certo modo com uma aparência bastante agastada, e isso me trouxe realmente uma sensação de que os animais não deveriam participar da festa".

Como fiel, ele já tinha participado do cortejo da lavagem do Bonfim, mas não percebia que os animais eram sobrecarregados e maltratados. “Percebia, mas eu não tinha, digamos assim, essa visão, porque eu ia participar da festa e também do lado religioso, da fé que nós devotamos ao Senhor do Bonfim”, declara.

No começo, o padre Edson Menezes da Silva era contra, mas Ana Rita conseguiu convencer até o religioso. “O padre foi sensível, e nós conseguimos, em uma conversa, mostrar a ele que era uma ação extremamente positiva e humanitária”, lembra a advogada.

“Eu penso que estão repensando e deverão hoje ter outro posicionamento. Não se trata de vencedor e vencido, mas da vitória da vida e da vitória daqueles que estão sofrendo. Conversando é que a gente se entende”, relata o padre.

A imagem do entardecer em Porto Alegre é linda, mas há um momento em que tudo parece perder a magia, o encanto, e o que os olhos veem dá medo.

O cavalo está estirado na estrada e foi levado por policiais. Ele não estava doente, mas cansado. Livre da carroça, rolou na grama, uma forma de relaxar e de se alongar.

Todos os dias é sempre igual. Na BR super movimentada, carroceiros e seus cavalos se arriscam em uma viagem perigosa entre caminhões carregados e carros velozes. É um risco permanente.

O destino desses homens, mulheres e até crianças é o centro. Eles vão atrás de restos. A reciclagem do lixo é o ganha pão de centenas de famílias pobres que vivem, principalmente, nas ilhas ao redor de Porto Alegre.

Nessa marcha de cavalos pelas ruas de Porto Alegre, seguem oficialmente quatro mil cavalos. As entidades protetoras garantem que esse número é muito maior. Dizem que a prefeitura não tem controle das carroças que chegam de cidades vizinhas à capital gaúcha. É o caso, por exemplo, da carroceira Maria Luiza Pereira Gomes, que viaja 17 quilômetros de Alvorada até Porto Alegre. Ela conta que demora, aproximadamente, uma hora e meia para chegar na cidade. Durante o trajeto, ela diz que corta pasto e dá água para o Popó, seu cavalo.

Pena que são poucas Marias e poucos Popós. A realidade, na maioria das vezes, é diferente. Cavalos apanham, não têm ferraduras adequadas para proteger os cascos do asfalto, celas mal colocadas provocam ferimentos, e as cargas são tão grandes que, às vezes, nem acreditamos no que vemos.

Mas, no meio desse caos que parece feito mais de sofrimento que de cuidado, nos deparamos com uma cena que parece inacreditável. O cavalo Osama não trabalha, não puxa carroça nem apanha e, ainda por cima, pode se dar ao luxo de comer dentro da cozinha.

Na maior tranquilidade, sempre que tem vontade de comer pão e geléia, Osama entra na casa da Márcia, dona do sítio onde vive, e come até se fartar. O sítio é uma espécie de refúgio para cavalos usados em carroças que foram tirados de seus donos.

“O atrito aquece o ferro. E o atrito é forte, porque eles estão carregando peso. Nas carroças, além de eles puxarem, como as rodas são muito pequenas, eles fazem uma força de cima para baixo. Você imagina no asfalto no verão, um calor de 50°C, a temperatura do asfalto e, ainda, o atrito com o ferro”, relata a nutricionista Fair Soares.

No sítio, os cavalos recebem tratamento e o carinho das amigas Márcia e Fair, a nutricionista que há três anos criou a ONG Chicote Nunca Mais para defender e proteger cavalos. As duas são umas mães.

No dia em que o Globo Repórter esteve no sítio, havia nove cavalos, todos com histórias muito tristes. “Esse aqui é o sargento. A polícia nos entregou ele, porque estava solto na via pública e tem uma pata com artrose, um tumor ósseo, que a gente ainda não conseguiu averiguar ver exatamente o que ele tem”, conta a nutricionista.

Com patas machucadas, quebradas e má nutrição, os cavalos chegam ao sítio sempre muito mal. Às vezes, em carne viva. O cavalo Bruno chegou desse jeito. Mas essa é uma história com final feliz. Dois meses depois de ter chegado ao sitio, de ter sido tratado, ele ainda não está 100%, mas não parece mais o mesmo cavalo.

Quando ficam bons e curados, os cavalos vão para propriedades de pessoas selecionadas pela ONG que os recebe e pelo poder público. Os fiéis depositários, como são chamados, não poderão usá-los para o trabalho.

Todos os dias, Fair, como fundadora da Ong Chicote Nunca Mais, anda pelas ruas conferindo o tratamento que os cavalos recebem de seus donos.

Fair e Márcia têm a ajuda de 400 associados na Chicote Nunca Mais. E o que alimenta o sonho de uma vida melhor para todos os cavalos é o que conseguem fazer a cada dia, mesmo que seja um pouco. “´É uma sensação de vitória. Na realidade, cada cavalo que você consegue resgatar da carroça, que você consegue tirar desse meio cruel, é o que faz no outro dia você levantar e continuar lutando”, declara a fundadora da ONG.



Nota: A APA procura realizar um trabalho nas ruas de orientação sobre os cuidados que estes devem ter com os animais, visando evitar casos de doenças e maus-tratos. Os carroceiros precisam de políticas públicas eficazes, com ações como cadastramento de carroceiros e cavalos, emplacamento das carroças e licenciamento dos condutores. O monitoramento diminuiria a exploração e o sofrimento dos animais utilizados como meio de sobrevivência por muitos carroceiros.

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